"Só existem dois dias no ano que nada pode ser feito. Um se chama ontem e o outro se chama amanhã, portanto, hoje é o dia certo para amar, acreditar, fazer e principalmente viver”.
(Dalai Lama)


segunda-feira, 2 de agosto de 2010

A honra das mulheres


Começou pouco depois que se conheceram. Um belo dia, sem que nem pra que, ele grunhiu: você não sabe o que diz. Ela tentou se defender, explicar mais uma vez seu argumento que não lhe parecia estúpido. Ele virou as costas e foi se servir de um uísque que não lhe ofereceu. Quer gelo, ela perguntou em voz baixa, já procurando o baldinho e o pegador. O não foi seco. Assunto encerrado.

Tudo deveria ter se encerrado ali. Errou. Dois anos depois, já morava com ele e, quando engravidou, admitiu que ele tinha um gênio difícil, que não queria esse filho e que, furioso, a maltratara quando recebeu a notícia. Como se nada tivesse a ver com isso, como se o Espírito Santo a tivesse visitado à revelia dele.

As brutalidades cotidianas vai engolindo. Quer salvar a relação, é o pai do seu filho. E vai enveredando pelo caminho do calvário, bem conhecido das mulheres que hipotecaram suas vidas a homens violentos. São elas que viram estatística.

A violência nem sempre é um gesto físico, como uma bofetada. Começa antes, é feita não só de atos, mas de sua ausência, de desacatos, um decreto de inexistência que anula sua vida, um olhar que lhe atravessa como se você não estivesse ali. É a presença incontornável de um poder inconteste que, mesmo sem origem ou justificativa, se exprime nos menores gestos. Espécie de direito divino ao que há de melhor em casa, a melhor cadeira, o controle da TV, o espaço na cama, apagar ou acender a luz, o direito de falar e ser ouvido, ao silencio quando trabalha, ao barulho quando recebe os amigos. Direito de ser respeitado em seus desejos. Tudo que a ela é negado.

Quando a violência sanguinária contra as mulheres explode como agora, frequente e macabra, abalando todo o País, essa pergunta volta, insistente. Em que momento começaram os gestos que a anunciavam? Quando acende o sinal de alerta que pressagia o perigo? Cada mulher deveria rever em sua vida as grosserias que deixou passar. Porque aceitou que fosse assim.

Quem tem filhas lembre-se de preveni-las de que ainda vivemos em um mundo que tudo perdoa aos homens e muito pouco às mulheres, o que é descrito como a ordem natural das coisas. Ordem inóspita para nós e por demais confortável para eles. Cuidado com o senso comum, o que parece óbvio, o "sempre foi assim", o "é da natureza deles", que disfarça uma ideologia que nos é tão desfavorável.

Cuidado, portanto, para não endossar pela omissão, submissão ou vício de sedução, uma ordem que não só não é natural mas é injusta. Que, em casos extremos, evolui para se tornar criminosa. E que precisa acabar.

Um bom exemplo é o conceito de honra. No século passado, quem, solteira, deixava de ser virgem, tinha sido desonrada. Era uma perdida. Perdida ou desonrada era a mesma coisa. Um século mais tarde, há quem fale em piranha, referindo-se a quem faz o que quer do seu corpo. Não há, na gíria, um equivalente masculino.

Homens não perdem a honra, o que quer que façam com seus corpos. Não é neles que ela reside. Só sentem a honra atacada quando perdem a mulher para outro homem e, por isso, já houve quem defendesse o assassino de uma mulher em nome da legítima defesa da honra. O corpo das mulheres vira, assim, uma espécie de coisa sem alma, mas com dono.

Os números assustadores de casos de violência contra as mulheres sugere que é urgente que elas defendam a sua honra, que não reside em uma suposta pureza, mas no seu estatuto de ser humano, livre e respeitado como todos devem ser.

É o princípio de honra feminina que é preciso incutir na nossa cultura e no nosso cotidiano. Que elas não precisam de protetor ou provedor. Ambos cobram e o custo pode ser alto. Que não devem levar desaforo para casa e, sobretudo, ouvi-los dentro de casa. Nem confundir o carinho, traço atávico da cultura feminina, e o instinto protetor que exercitam na maternidade, com a anulação de si que tudo perdoa. O tapinha dói e é véspera da chacina.

Que se envergonhe quem achou graça quando um goleiro boçal perguntou quem nunca saiu na mão com uma mulher. Deu no que deu.
                   
Rosiska Darcy de Oliveira, escritora

Extraído de ESTADÃO