"Só existem dois dias no ano que nada pode ser feito. Um se chama ontem e o outro se chama amanhã, portanto, hoje é o dia certo para amar, acreditar, fazer e principalmente viver”.
(Dalai Lama)


quinta-feira, 18 de março de 2010

Novas Flores



Hoje, dois meses que minha querida mãe partiu, folheando Seleções (ela adorava ler estas publicações), um texto me chamou a atenção. A princípio, o que de fato saltou aos olhos foi a palavra "flamboyants"- considero esta palavra (e a árvore), uma das belezas da natureza - mas, lendo o texto, percebi que se tratava de um sentimento maior do que simples admiração por palavras ou flores, trata-se de amor, saudade.

Quero compartilhar esta delicadeza:

"NOVAS FLORES
Os flamboyants estão floridos. Desabrocharam mais cedo este ano, talvez por causa do calor, esse calor fora do comum que envolveu o Rio desde o começo do verão, como um alerta de perigos futuros para o planeta. Desde janeiro, tenho observado as árvores em torno da Lagoa, a beleza de suas folhas filigranadas, cujo verde vai desaparecendo e dando lugar às flores de um vermelho quase laranja.

Agora sempre presto atenção à floração dos flamboyants e isso tem um motivo: há exatamente um ano, quando eles floriram em março, eu pensei em você. Pensei em como você estava sozinha, inerte no quarto azulado, naquele ambiente frio,
asséptico, cheio de máquinas e fios, sem poder ver a cidade e suas flores, o mar que tanto amava, as montanhas, tudo. Os flamboyants estão florindo e você não pode ver, foi o pensamento que me veio ao dirigir pela Lagoa naquele outro março, a caminho do hospital em Copacabana.

Hoje, um ano depois, as árvores da Lagoa recomeçaram sua floração – e você não está mais aqui. Nunca mais estará, para ver os flamboyants em flor, o mar do Leme, o pontal de pedra com os pescadores ao entardecer – nunca mais.
A vida vai continuar sem você, e a natureza seguirá pondo sóis, desabrochando flores e quebrando ondas, indiferente à ausência de um par de olhos líquidos que a observavam com tanto amor. Parece injusto, mas o que fazer? A vida é assim mesmo, diria o velho clichê. A morte é assim mesmo.

Sempre falo de um conto que me impressionou e que li ao acaso numa revista americana. Por distração, não guardei o nome do conto nem do autor – e jamais pude relê-lo. Mas ele permaneceu em mim. A história falava de um mundo dos mortos, um mundo igual a este em que vivemos, com casas, supermercados, ruas, tudo, apenas com uma diferença: nele, as pessoas desapareciam de repente, como se fossem uma bolha de sabão estourando no ar. E isso só acontecia, esse desaparecimento súbito, quando no mundo dos vivos não restasse mais ninguém para se lembrar delas.
Naquela ocasião, ao acabar de ler o conto, eu me perguntei se não seria mesmo assim. Isso explicaria o impulso que todos nós temos, de uma maneira ou de outra, de deixar rastros em nossa passagem pela Terra. Tudo o que escrevemos, pintamos, tocamos, fazemos, dizemos traz a intenção de deixar uma semente qualquer, de permanecer. De ser lembrado, de não ser apagado, de não se dissolver no ar como uma bolha que estoura. Essa ideia é um alento para nós, escritores. Quem sabe um dia, daqui a muito tempo, quando eu estiver quase apagando, quase desaparecendo naquele outro mundo, alguém lerá algo que escrevi e pensará em mim? Imediatamente, então, meu corpo-espírito tornará a ganhar substância e cor – pensei.

Hoje, o conto me volta à memória, enquanto olho a beleza do Rio neste fim de verão e penso em você. Se acaso estiver num lugar assim, num mundo como o daquela história, fique tranquila, minha amiga – pelo menos enquanto eu continuar aqui. Porque, toda vez que passar por um flamboyant em flor, vou me lembrar de você."


Saudades imensas e eternas!


Extraído de SELEÇÕES

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