"Só existem dois dias no ano que nada pode ser feito. Um se chama ontem e o outro se chama amanhã, portanto, hoje é o dia certo para amar, acreditar, fazer e principalmente viver”.
(Dalai Lama)


terça-feira, 27 de maio de 2008

O cigarro está com os dias contados

O cigarro é uma irracionalidade num mundo
regido pela correção política.



Fumar é um hábito que morreu socialmente, tanto quanto usar chapéu ou cuspir em escarradeiras. O mundo está dividido em ex-fumantes e gente que nunca vai colocar um cigarro na boca. O grupo dos ex-fumantes é composto também de ex-boêmios, ex-românticos, ex-poetas, ex-artistas. Gente que já fumou muito e parou.


E que, coincidência ou não, também parece já ter vivido seus melhores dias. Apesar de terem hoje dentes mais brancos e uma pele melhor, os neocaretas exalam um pouco o ar daquelas pessoas que já foram mais relevantes e mais felizes.

Como o mundo desembocou nessa rua sem saída para o cigarro? Ao longo de um século, fumar foi um hábito para lá de aceito: era um rito de passagem desejado, um gesto de glamour cultuado, quase um sinal de normalidade – esquisito era o sujeito que não carregava um maço no bolso. O cigarro era um companheiro que inspirava, consolava, ajuda a celebrar momentos bons, redimir passagens ruins e trafegar por horas solitárias. O cigarro estava na televisão, no cinema, nas revistas, nas crônicas de Rubem Braga e de Nélson Rodrigues. Estava em todo lugar: na sala de casa, no consultório médico, nos elevadores, na boca dos pedreiros e dos banqueiros.

Para quem nasceu ontem, no entanto, fumar é apenas um ato vergonhoso, quase uma fraqueza moral. O fumante é visto como um viciado, um doente, alguém que incomoda. O golpe derradeiro é a recente proibição do cigarro nos cafés franceses – ícone máximo daquela imagem idílica do cigarro como universo temático, como dimensão estética. Até isso está virando fumaça.

Alguém dirá que o grande responsável por essa derrocada é o câncer. Acredito que o carcinoma – para não falar no mau hálito – tenha sua parcela de culpa. Mas acho que há um fator ainda mais forte para o banimento do tabaco. Trata-se do espírito hedonista do cigarro, que perdeu o lugar neste mundo prático, financista e sem graça em que vivemos. O algoz do fumacê não é a medicina: é o puritanismo.

O cigarro é uma auto-indulgência num mundo que cobra estoicismo a todo momento. O cigarro é uma pausa, um tempo que dedicamos a nós mesmos, num mundo acelerado, em que o tempo não nos pertence mais. O cigarro é uma pequena transgressão num mundo cujas engrenagens não permitem desobediência. O cigarro é uma irracionalidade num mundo regido pela correção política. O cigarro é um prazer solitário, sujo, fora da lei, num mundo grandemente asséptico e moralista. O cigarro tem um quê de lassidão e poesia – e não há mais lugar para isso. Eis o que eu lamento: o cigarro está desaparecendo muito mais pelo que ele traz de bom ao espírito do que pelo que faz de mal ao corpo. Por tudo isso, desconfio que o mundo fica um lugar pior sem o cigarro.


Extraído de REVISTA ÉPOCA

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